A negritude trouxe o mundo negro para dentro do campo literário francês. A africanidade e o mundo francês não são hoje os únicos horizontes da nova geração de escritores francófonos em busca da universalidade. Os anglófonos e lusófonos, que nunca cederam verdadeiramente à tentação de “romantização” da África como fizeram os poetas da negritude, definem-se por uma constante problematização da origem e por sua descrição espontânea em uma world literature sem fronteiras.
Fotografia de Malick Sidibé, Garçons à la chaussée, 1975-1998. Gelatina e prata. 33,3 X 40,3 cm.
Surgida nas primeiras décadas do século XX, a literatura africana de língua francesa é um dos componentes essenciais do que se convencionou chamar de francofonia. Seus poetas, dramaturgos e romancistas ampliaram consideravelmente o leque do imaginário literário francês ao introduzir o harmatão e as jaqueiras, os pajés e os “abikus”, “os sóis das independências” e os guias providenciais.
Mais importante ainda, além de enriquecer o francês no sentido do léxico, o surgimento de uma escrita francófona africana no contexto histórico da colonização trouxe como conseqüência o problema do olhar que uma civilização milenar e colonizadora tem do mundo por meio de sua língua.
Revolução do olhar
Uma conseqüência plena de sentido que não escapou à percepção anticolonial de Jean-Paul Sartre, que escreveu, em 1948, em seu célebre prefácio à Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de langue française (Antologia da nova poesia negra e malgaxe de língua francesa) (Ed.PUF, Paris, 1948), organizada por Léopold Sédar Senghor: “Eis aqui homens negros em pé que nos olham e a quem desejo que sintam, como eu, a emoção de serem vistos[…] Hoje, esses homens negros nos olham e nosso olhar entra em nossos olhos; tochas negras, por sua vez, clareiam o mundo e nossas cabeças brancas não passam de pequenos lampiões balançados pelo vento”.
A poesia da negritude que o filósofo homenageava era, pois, uma revolução do olhar. Essa subversão dizia respeito primeiramente aos africanos a quem séculos de escravidão e colonização ensinaram a olhar seu continente e suas culturas com os olhos de desprezo do Ocidente triunfante.
Surgida na Paris dos anos 1930 e 1940, sob a pluma do trio carismático formado pelo senegalês Senghor, o martinicano Aimé Césaire e o guianense Léon-Gontran Damas, a nova poesia negra cantava sem complexo a beleza da “mulher nua, mulher negra”, exaltava a energia e o fausto dos impérios africanos esquecidos, “dessexotizando” e desalienando o olhar que o negro tinha sobre si mesmo e sobre seu passado.
Conclamando o negro a retomar a confiança em sua cultura, a negritude preparou o terreno para sua libertação política. Não é exagero dizer que essa poesia revolucionária continha o germe, desde seus primeiros textos, das independências africanas que viriam!
A ficção, que surgiu logo após a poesia no campo francófono, não foi menos lúcida, como comprova a leitura de alguns dos romances mais representativos das diferentes gerações que se sucederam ao longo dos últimos cinqüenta anos.
Anticolonial no início, o campo literário fortaleceu-se a partir do momento em que se distanciou do viés realista e procurou expressar o caos africano por meio dos espelhos quebrados de uma narrativa fragmentada, carnavalesca e, sobretudo, metafórica das turbulências do cotidiano.
A nova geração de romancistas francófonos, cujos nomes de maior destaque são Abdourahman Waberi, Kossi Effoui, Alain Mabanckou e Jean-Luc Raharimanana, vai ainda mais longe negando-se a limitar-se aos assuntos afro-africanos. Eles reivindicam a liberdade de escrever como autor e de inscrever suas obras em filiações eletivas que desprezem a origem. Buscam ser universais e afirmam que “a literatura africana não existe”!
Perguntas para Bernard Magnier, jornalista literário e diretor da coleção “Afriques” da editora Actes Sud (Arles)
Fotografia de Malick Sidibé, Danser le TWIST, 1965-1998. Gelatina e prata. 59,5 X 50 cm.
Pode apresentar-nos a coleção africana sob sua direção na editora Actes Sud?
Bernard Magnier: A coleção “Afriques” – “Afriques” com um “s” para deixar clara a diversidade e a multiplicidade das literaturas africanas – existe há dez anos. É formada por aproximadamente trinta títulos que reúnem grandes nomes como os nigerianos Wole Soyinka e Ken Saro-Wiwa, o sudanês Jamal Majhoub, o zimbabuano Chenjerai Hove ou a marfinense Véronique Tadjo. Nossa abordagem é geográfica e nossa ambição é levar ao público as obras mais representativas do continente africano do sul do Saara, somadas todas as línguas.
Além da origem geográfica, há outra coisa que una esses escritores?
A urgência. Parece-me que há um sentimento de necessidade em muitos desses livros, o que se traduz pela escolha de temas predominantemente atuais, como as ditaduras, a imigração, a condição das mulheres. São assuntos sérios, mas tratados freqüentemente com humor. É esse humor, somado a uma escrita lírica, onírica ou fantástica, que permite ultrapassar o real e ler essas obras como qualquer texto de imaginação ou criação.
Como se traduz a relação complexa que esses autores mantêm com as línguas europeias, herdadas de uma história colonial dolorosa?
Alguns dizem que estão totalmente à vontade nessas línguas, a francesa ou a portuguesa. Outros mantêm relações conflituosas com as mesmas e necessitam apropriar-se delas inventando uma língua de escrita a partir de um idioma de base vindo efetivamente de outro lugar. Assim como os latino-americanos, os indo-ingleses ou os caribenhos, os africanos estão transformando profundamente as línguas imperiais européias ao introduzir registros de língua e de sensibilidade que não existiam antes.
No cruzamento da oralidade com o pós-modernismo
Na anglofonia, assim como na francofonia, os anos 1990 assistiram ao surgimento de uma nova geração de autores que estão renovando a inspiração ao situar suas obras, mais decididamente que seus ancestrais, no cruzamento da oralidade africana com as tradições pós-modernas ocidentais.
Injustamente desconhecidas, as literaturas lusófonas da África mostram, há cinqüenta anos, uma vitalidade e uma fertilidade surpreendentes da qual é testemunha tanto a poesia militante de revolta contra o colonialismo sob a pluma da primeira geração de escritores (Antônio Jacinto, Viriato da Cruz, Antônio Cardoso, Agostinho Neto), como a ficção moderna e metafórica dos romancistas contemporâneas, dentre os quais Mia Couto (Moçambique), Pepetela (Angola), Germano Almeida (Cabo-Verde) e Abdulai Silai (Guiné-Bissau).
Anglofonia, lusofonia…
As literaturas modernas da África negra escrevem-se também na língua inglesa e na língua portuguesa. A produção literária anglófona desenvolveu-se, de fato, a partir de 1950. Ela é dominada pela figura tutelar de Wole Soyinka. Ao mesmo tempo dramaturgo, poeta, romancista e ensaísta, este gigante das letras africanas recebeu, em 1986, o Prêmio Nobel de Literatura por ter sabido “dar forma ao drama da existência em uma ampla perspectiva e com conotações poéticas”.
Outros grandes escritores anglófonos são Chinua Achebe, Ben Okri, Ayi Kwei Armah, Ngugi wa Thiong’o, Nuruddin Farah e Dambudzo Marechera. Considerado o pai da ficção africana moderna, Chinua Achebe tornou-se conhecido ao publicar, em 1958, Le monde s’effondre (O Mundo Desmorona) (Ed.Présence Africaine, Paris, 1972) que evoca a destruição da sociedade tradicional em contato com o Ocidente.